quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

A DEUSA E SEU CHAMADO

 


A concepção mais antiga de divindade que se conhece é a Grande Mãe. Perdeu-se no tempo a origem de seu culto, mas podemos afirmar que remonta à época Paleolítica, por volta de 40000 anos a.C.

Um de seus maiores atributos é o de doadora da vida, aquela que acolhe a tudo e a todos em seu seio, os nutre, alimenta e protege. Identificada com a própria Terra, que oferece a vida e a fertilidade, a Deusa em seu aspecto de Mãe é o princípio básico de tudo. Observações dos movimentos da Natureza permitiram aos povos pré-históricos desenvolverem as bases de sua religião. Da Terra todas as coisas provém e para ela todas as coisas retornam. Os povos antigos retiravam dela o alimento necessário à sobrevivência diária, uma vez que as tribos ainda viviam em estado nômade, seguindo as mudanças climáticas favoráveis, e praticando uma cultura extrativista de subsistência; ainda não havia surgido a agricultura nem a criação de animais domésticos.

Em dezenas de sítios arqueológicos foram encontradas representações de deusas, chamadas de Vênus. São pequenas figuras femininas, nas quais as características sexuais são bastante acentuadas: seios, coxas e nádegas, numa alusão flagrante de que os princípios de fertilidade e reprodução estão ligados à energia vital. Apresentam o ventre proeminente, ostentando uma gravidez inegável. É através da gravidez que as mulheres trazem nova vida ao mundo e é através da gravidez divina que a Deusa cria e perpetua a existência.

Os povos antigos viam a divindade como feminina: uma vez que era a mulher que dava à luz novas crianças para a tribo, somente uma deusa poderia perpetuar a criação. Nesse período, ainda não se tinha noção da participação do homem no ato da fecundação. Acreditava-se que a gestação era um acontecimento mágico e divino, e que as mulheres eram sagradas, pois garantiam a perpetuação do clã.

Também observava-se que que todas as coisas vivas tinham um tempo de duração, que tudo nascia, crescia e morria. Assim, a Deusa, além de ser cultuada como a Mãe que dá a vida, passou a ser vista também como a Mãe Terrível, a destruidora, aquela que governa a morte. A Deusa, a geradora de povos, a terra fértil que a tudo sustentava, era também aquela que tomava de volta a vida. Sua natureza ambígua, como geradora da vida e portadora da morte, causava reverência e temor.

Os cultos matrifocais centrados na Deusa perduraram até o início da Idade do Bronze, quando invasões de povos vindos do norte trouxeram concepções religiosas patriarcais.

As primeiras sacerdotisas foram inegavelmente as mulheres que cuidavam da manutenção da vida doméstica. Supomos que uma das primeiras percepções sobre o movimento cíclico da natureza, de vida, morte e renascimento aconteceu justamente quando essas mulheres, após as refeições, depositavam as sobras dos alimentos em algum lugar determinado. Os restos de sementes e frutas que caíam sobre o solo ou que eram enterrados, terminavam por germinar, cumprindo seu ciclo inevitável. Talvez aqui estejam os primórdios dos cultos funerários e da certeza de um retorno à vida após a morte. Aquilo que era enterrado novamente germinava, voltava à vida. Assim, aqueles que morriam, deveriam ser colocados na Terra, o seio da Mãe, para que pudessem retornar novamente. As cavernas passaram a representar o útero da Mãe, a promessa de um retorno na primavera seguinte. O início da crença na reencarnação.

As fases da Lua estão intimamente ligadas à Deusa nos seus três aspectos. Deusas gregas como Ártemis ou Atimite, que regiam os nascimentos, Arádia, Diana e Hécate, que, identificadas com a Lua, personificavam o dogma da transformação e da reencarnação. As fases crescente, cheia e minguante refletem diretamente essa espiral sagrada e cíclica vital.

A identificação da Deusa com a Lua é muito antiga e está relacionada com as alterações do corpo da mulher durante a gravidez. Os ciclos lunares nos ensinam a perceber, em nosso próprio interior, os movimentos ambíguos de luz e trevas, crescimento e diminuição e a trabalhar esses aspectos.

Esse fundamento é muito enfocado na Wicca Gardneriana, que opera com as polaridades e as marés energéticas. Entretanto, para que possamos compreender todo esse Mistério, precisamos vivê-lo internamente, percebê-lo como um processo natural, identificá-lo e aceitá-lo. O que chamamos comumente de "ouvir o Chamado da Deusa" começa necessariamente com uma sensação de desconforto íntimo, devido às dualidades inerentes à natureza da Deusa e que existem em nosso interior. A Deusa é Luz, mas também é Sombra, é Vida, mas também é Morte, é Crescimento, mas também é Diminuição, etc. Trata-se de um processo penoso e de difícil compreensão; infelizmente, hoje em dia, a maioria das pessoas entra na Wicca pela  porta dos fundos, e ouvir o Chamado da Deusa tornou-se algo semelhante a uma festa florida e superficial, na qual nem mesmo os participantes estão muito seguros do que estão fazendo lá.

Na verdade, a Deusa nos chama proporcionando um sentimento de vazio e de perda, como se tudo aquilo que nos cercasse e todas as coisas nas quais acreditássemos se tornassem, de um momento para o outro, sem nenhum sentido. A Deusa é sábia nas suas ações, do contrário, se não perdêssemos o sentido de importância que damos à nossa vida cotidiana, não teríamos espaço interno para recebê-la. Assim, tudo se torna vazio, pó sobre pó. Para se construir um novo edifício, é preciso demolir o antigo e limpar completamente o terreno.

O perigo que existe no processo de encontro com a Deusa é justamente o desencanto que passamos a ter de tudo o que nos cerca. Se não tivermos alguém mais experiente que nos oriente, podemos entrar em colapso. Sinceramente não creio em afirmações de que o Chamado da Deusa aconteceu de outra maneira, porque é sempre da maior escuridão da madrugada que nascem os primeiros raios de luz da manhã. 

Fonte: Wicca Gardneriana - Mario Martinez - Editora Gaia.